Ao debater uma possível punição para o abuso de poder religioso nas eleições, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) deve tentar separar, com critérios claros, o que é uma manifestação política legítima de um padre ou pastor do que é uma tentativa de cooptação do fiel por meio do discurso religioso. A opinião é do advogado e integrante da Academia Brasileira de Direito Eleitoral (Abradep) Luiz Eduardo Peccinin.
Autor do livro O discurso religioso na política brasileira: democracia e liberdade religiosa no Estado laico, Peccinin alerta para o risco de policiamento das crenças religiosas. A discussão sobre abuso do poder religioso é acompanhada com apreensão por aliados do presidente Jair Bolsonaro, que veem no debate uma ameaça à liberdade de religião e uma caça às bruxas contra o conservadorismo. A Corte eleitoral marcou a retomada do julgamento para quinta-feira.
Que preocupação o TSE deve ter, caso prevaleça o entendimento para punir o abuso de poder religioso, como defende o ministro Edson Fachin?
É muito importante que o TSE estabeleça parâmetros objetivos da forma de configuração e fiscalização desse abuso, justamente para dar previsibilidade e segurança jurídica a todos os envolvidos no processo. Essa é uma preocupação que o TSE deve ter em mente, para que a gente não crie um ambiente de policiamento do discurso religioso, das crenças e dos cultos. Não só o Ministério Público atua na fiscalização do processo eleitoral, mas também partidos, coligações e candidatos. Se não for tomado esse cuidado e se não forem fixados parâmetros claros, corre-se o risco de haver um contexto de intenso policiamento das atividades religiosas.
Existe risco de discriminação contra religiosos, conforme apontam juristas evangélicos?
Sim. É importante separar que a simples manifestação de preferência política por religiosos, clérigos, pastores, sacerdotes, não é ilícita nem pode estar passível de qualquer censura. Então, com o que o TSE tem de se preocupar, é onde traçar essa linha, daquilo que é uma manifestação legítima do pensamento político e aquilo que pode ser enquadrado como uma tentativa de captação do voto por meio do discurso religioso.
E como traçar essa linha?
O que significaria atravessar essa linha seria sair da sugestão, de posição política pessoal do pastor, clérigo, para uma tentativa de pressão sobre o convencimento do eleitor. Seja estabelecendo que determinado grupo é o único capaz de garantir a salvação e respeito às doutrinas da igreja, ou fazendo uma demonização do adversário, ou tentando coagir, pressionar, por meio de um temor reverencial que exista na relação entre fiel e sacerdote. Dizer que “a nossa igreja não vai sobreviver se esse candidato ganhar ou perder” ou vincular a concretização da doutrina diretamente a um grupo que esteja no processo eleitoral.
O senhor já disse que a lei não pode exigir que um cidadão religioso forme suas convicções políticas separadamente de suas outras crenças pessoais…
Alguém que leva sua religião a sério vai, na verdade, tomar todas as decisões da vida com base nas suas convicções religiosas, morais – e isso não é ilegítimo. O voto dele é tão legítimo quanto o de um cidadão ateu. É preciso também ter cautela para não tratar a questão de modo elitista, ou descolado de uma realidade social concreta. A sociedade brasileira é predominantemente cristã. Não podemos partir para uma tutela do convencimento do eleitor que pode, inclusive, afrontar a liberdade que a Justiça busca proteger. Não podemos tratar o cidadão religioso como subcidadão, como alguém que não tenha capacidade, por sua conta e risco, de fazer uma escolha legítima sobre qualquer ponto de vista que tenha.
Para Fachin, a imposição de limites às atividades eclesiásticas é medida necessária à proteção da liberdade de voto. Como colocar esses limites?
É complicado porque, quando se fala de Estado laico, fala-se da atuação do Estado em si, nunca de impedir que cidadãos religiosos e líderes religiosos participem do debate público. Não tem previsão legal no Brasil que impeça padre, sacerdote de concorrer nas eleições, como no México e em Portugal. E os partidos não são proibidos de fazer referências a doutrinas cristãs dentro de seus estatutos. Uma coisa é cuidar para que o Estado, dentro das suas leis e suas políticas públicas, não afronte a Constituição. Outra coisa é a intenção de escantear qualquer tipo de motivo ou razão religiosa de um debate que tem de ser o mais plural e inclusivo possível.
Dá para separar Estado e religião no debate político?
Eu creio que não, até porque é legítimo que existam grupos de interesses diferentes dentro do Estado. Tanto no debate eleitoral quanto no do Congresso é fundamental garantir um embate de diferentes visões de mundo e projetos políticos diversos. Laicidade significa que o Estado vai ser separado das igrejas e neutro em relação a qualquer doutrina religiosa, o que não significa filtrar o embate de ideias de razões de ordem filosófica, moral e, inclusive, religiosa.
O senhor defende punir o abuso de poder religioso?
No meu sentir, aquilo que o TSE já estava fazendo, da fiscalização da estrutura, do dinheiro das igrejas, dos seus meios de comunicação na promoção de candidaturas, era mais salutar. Vejo com ressalvas, apreensão, como isso vai ser interpretado por juízes e promotores eleitorais, que são seres humanos e vão também enfrentar situações concretas, levando para os processos muito de suas próprias convicções religiosas.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.