Um dos mais prestigiados programas da rede britânica BBC One, o Imagine…, contou com a aparição de um brasileiro no mês passado. Saído de Itanhaém, na Baixada Santista, o violonista Plinio Fernandes, de 26 anos, vem colhendo os frutos de uma ousada aposta feita em 2013: estudar música erudita em uma das mais renomadas instituições de ensino da área, a Royal Academy of Music, em Londres.
Nos últimos meses, para não passar a quarentena sozinho, Plinio se juntou a uma família de sete irmãos músicos que se isolaram na casa dos pais, em Nottingham, a 200 km da capital britânica. “Toda semana fazíamos lives no Facebook, com mais de um milhão de pessoas assistindo”, lembra. A atmosfera de diversão e dedicação às artes marcou os dias de confinamento do grupo, e despertou a curiosidade da emissora. O programa registrou a rotina dos jovens músicos, em crescente sucesso no país.
Apesar do longo lockdown inglês, de provas postergadas e do temor pela família no Brasil, a verdade é que graças a seu talento, a uma amizade muito especial e a um pouco de sorte, o momento tem sido muito produtivo para Plinio. O êxito, no entanto, envolve uma trajetória que vem sendo construída com empenho há quase duas décadas.
A música sempre esteve presente em sua vida. O bisavô foi o compositor do hino de São Bernardo do Campo, e o pai, um entusiasta do violão, o grande exemplo para que seguisse tal caminho. “Lembro de vê-lo tocar, mas o violão era muito grande para mim. Aos 7 anos, eu tentei segurar e finalmente encaixou”, recorda Plinio, em entrevista dada por telefone ao Estadão.
Mestres
A partir daquele momento, ele passou a ter aulas de violão erudito com o maestro Eduardo Martinelli. Aos 8 anos, venceu o tradicional concurso Musicalis, na categoria dedicada à sua faixa etária. “Foi uma motivação para continuar.” Entre um e outro evento, Plinio teve a oportunidade de conhecer os principais violonistas do País, que eram jurados nas disputas. “Conheci nomes como o Henrique Pinto, com quem tive um contato muito inspirador. Em casa, eu e meu pai sempre ouvíamos o CD do Fábio Zanon tocando a integral para violão de Villa-Lobos; quando eu o conheci, fiquei emocionado. Era incrível estar no meio de tanta gente experiente.”
Desde aquele momento, a questão da representatividade já era importante para Plinio. “Pelo fato de eu ser negro e não ter muitos nesse meio, eu sentia uma necessidade de referência, que encontrei de forma muito especial em duas pessoas: o João Luiz Rezende, do Brasil Guitar Duo, e o Franciel Monteiro, que participava dos concursos em categorias mais avançadas.”
Nesse meio tempo, Martinelli precisou se mudar para Campo Grande. Se isso fez Plinio ficar sem um professor, possibilitou também uma oportunidade: “solar” com a Orquestra Barroca do Mato Grosso, que o mestre acabara de fundar. “Eu tinha 12 anos, toquei em três ou quatro concertos. Foi um momento decisivo.”
Referências
Suas principais inspirações iam de Bach a Heitor Villa-Lobos, mas Plinio não ignorava outros ritmos. “Ainda hoje, sei de trás para a frente todas as músicas dos Racionais”, revela, explicando que a versatilidade do violão lhe permite transitar tanto pelo samba, a MPB e o jazz quanto pela música erudita. “Em casa com os meus pais, eu sempre ouvia Milton Nascimento, Djavan e Gilberto Gil. Isso me formou como indivíduo.”
Depois de um ano sem professor, o pai de Plinio ligou para Henrique Pinto, que aceitou a dar aulas quinzenais, sem cobrar por elas. “Por três anos, até os meus 16, eu pegava o ônibus, subia a serra (para São Paulo), fazia aula e voltava.” As aulas foram interrompidas quando o mestre não resistiu às complicações de um enfarte. Depois de um ano de luto e sem professor, Plinio recebeu a ligação de Linda, viúva de Henrique, que fez a ponte com outra referência: o consagrado violonista Fábio Zanon. “Foi excepcional ter aulas na casa do meu ídolo.”
Sonhando alto
Nesse período, Plinio começou a pensar na possibilidade de estudar fora. “Fui falar com o Fábio para ver se a ideia era muito lunática. Ele disse: pô, cara, é possível, sim; vamos nos preparar e estudar inglês direito.” Estava plantada a semente para a vaga na Royal Academy – instituição onde o mestre estudou e da qual ele também é professor convidado.
Era novembro de 2012 quando chegou a hora da seleção, feita por vídeo: “Mandei um DVD tocando o repertório exigido, mas ainda precisava falar por que a Royal Academy era um lugar para mim. Fiz isso de uma forma capenga, com a câmera no meu rosto, lendo um papel com um inglês meio fajuto”. A aprovação veio no fim de janeiro, acompanhada de um empecilho: só a anuidade ficava em torno de 18 mil libras (hoje R$ 127 mil).
Numa cidade pequena como Itanhaém, a notícia se espalhou rápido e a sua aprovação virou tema de reportagens. A repercussão ajudou Plinio, contemplado com uma bolsa integral da Capes. Os planos de representar o País lá fora, no entanto, tiveram de ser adiados. A fundação acabou perdendo o prazo dos trâmites com a Royal Academy. Plinio precisou esperar mais um ano para concretizar o sonho, mas aproveitou para melhorar o inglês.
Adaptação
Hoje, ele cursa seu mestrado na Instituição, com o mesmo entusiasmo do primeiro dia. Nesse percurso, além das lições com mestres como Michael Lewin, Plinio considera decisivo o encontro com o amigo Sheku Kanneh-Mason, jovem celista que ganhou projeção ao tocar no casamento do príncipe Harry e Meghan Markle, depois de ter vencido o prêmio Young Musician, da BBC. “A vitória dele foi importante para mim por mostrar como a questão racial não era decisiva na música erudita”, avalia Plinio, que hoje divide a moradia com Sheku e Braimah, outro dos sete irmãos da família Kanneh-Mason – aquela com a qual passou a quarentena.
Com Sheku, ele gravou um arranjo de Scarborough Fair para o seu novo CD pela Decca (gravadora inglesa). O disco foi lançado este ano e entrou no “top 10 geral” da Inglaterra. “Foi a primeira vez em 35 anos que isso aconteceu com um disco de música erudita, e a faixa que gravamos é a mais popular do CD.”
A prova final do mestrado de Plinio, que seria em maio, por causa da pandemia foi remarcada para setembro. “Só vai ser estranho pois vou tocar apenas para uma banca de três pessoas, sem a plateia que era prevista.” Parte desse preparo já se deu de nas lives feitas com a família Kanneh-Mason. “Eu não tinha quase nenhuma presença nas redes, e vi como isso é crucial. Muitas pessoas passaram a me seguir para acompanhar meu trabalho. Quero fazer jus a elas.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.