Pitty lança em Curitiba o disco que marca a sua reconexão às origens baianas
No último mês de abril, Pitty lançou Matriz, o quinto álbum de estúdio de sua carreira solo (não contando aqui os registros ao vivo, o disco de remixes, o projeto paralelo Agridoce e ainda suas experiências anteriores à frente da banda Inkoma). Entretanto, para conceber o novo disco, a cantora e compositora não parou de fazer suas apresentações pelo Brasil. Emendou a turnê com as gravações das faixas costuradas pela ideia do retorno ao passado em Salvador e uma nova conexão com as suas origens baianas. Tudo isso sem parar de olhar para a frente em sua música, claro.
Na noite de hoje (sábado, 3 de agosto) ela mostra em Curitiba o show que mistura clássicos de trabalhos anteriores com várias faixas do novo repertório gravado. Pitty bateu um papo exclusivo com o Ric Mais sobre estas novidades. Abaixo, além de desvendar um pouco do conceito e dos bastidores de Matriz, falan sobre o orgulho que tem em representar um estado de grande diversidade musical e cultural e, ainda, de atitude muito rock’n’roll como é a Bahia.
O título do disco não é citado uma vez sequer nas letras. Em compensação, uma única palavra de seis letras sugere toda a ideia central da coleção de novas músicas. Como surgiu a ideia do batismo?
O batismo veio antes, na turnê. Eu quis cair na estrada antes de fazer o disco novo, e montei o show primeiro. Nesse show, a história que me deu vontade de contar foi a dessa investigação da gênese das canções, a rodinha de violão, chegando nesse momento atual de usar beats e samples nas músicas. O show se propunha a passear por esses tempos, do ontem até o hoje, e por isso veio o nome Matriz. Quando o disco foi se fazendo, percebi que nele havia muita coisa que remetia também à esta palavra. As composições, as parcerias que estava com vontade de fazer, a experimentação mais forte com ritmos latinos e candomblé, com capoeira. Percebi que havia muita Bahia naquele disco que estava surgindo, e mergulhei nessa onda. O disco abre com um samplede Dorival Caymmi como base para uma composição autoral minha. E por aí foi. Alicerce, base, gênese. Matriz. De onde veio e o que virou.
Desde o lançamento do seu segundo álbum de estúdio você costuma dar intervalos relativamente grandes entre um trabalho e outro. Quais as vantagens de se passar quatro, cinco anos elaborando um novo repertório?
Não sei bem porque nunca pensei sob a ótica da vantagem ou desvantagem (risos)… É simplesmente uma coisa que acontece, parece ser o tempo natural das coisas por aqui. O tempo de recarregar, de ter novas ideias, de respirar, de criar. De pesquisar. De reunir conteúdo e bagagem suficiente para sentir que existe um disco que valha a pena ser lançado.
A banda que gravou este disco já está em turnê desde 2018. Alguma destas novas faixas surgiu durante a estrada e já havia sido executada antes de ser gravada? Vocês deram um tempo na turnê para ajeitar o repertório, ensaiar, entrar em estúdio?
Foi tudo sendo feito durante a turnê, o que foi uma experiência completamente atípica, inversa até, mas muito interessante. O termômetro era o palco e algumas composições até mudaram de formato e arranjo depois de serem tocadas ao vivo. “Noite Inteira”, por exemplo, no disco é diferente da primeira vez que tocamos ano passado num show no Rio. Eu curti essa criação coletiva, digamos assim. Nunca tinha feito show antes de lançar disco, era sempre o contrário. Mexer nas regras do jogo mostrou um jogo novo, um jeito diferente e criativo de se fazer as coisas. Nunca existe um jeito só, na verdade, e pra mim a graça é ir experimentando.
Você já tem três álbuns gravados ao vivo. Este novo repertório já está sugerindo ser gravado ao vivo e lançado daqui a uns dois anos?
Não pensei nisso ainda. Estou muito na fase de curtir esse lançamento agora, pensando nos próximos passos, videoclipes, seguimentos desse projeto.
A primeira faixa (“continuo bicho solto”) e a última ( “da minha essência não vou me afastar”) se conectam na ideia transmitida por alguns versos. Isto foi intencional?
Acabou sendo na hora da montagem, não na composição. Até porque a última, “Sol Quadrado”, é de uma demo de 2002, a primeira que mandei pra Rafa antes do Admirável Chip Novo. E a primeira, “Bicho Solto”, foi escrita agora. O que rolou é que durante a edição do disco percebi que elas dialogavam, assim como as outras, e procurei montar um roteiro com começo meio e fim para esse diálogo fluir ainda mais.
Existem duas vinhetas, quase próximas, que são formadas apenas por sua voz recitando uma única frase. Elas pertencem a letras que não entraram no disco? Como surgiu a ideia de ambas?
Eu gosto muito de aforismos, poesia, hai kai. Poesia curta, slam. Às vezes, uma palavra já é verso, no sentido de comunicar uma ideia inteira. Então eu tenho muitas frases soltas, pensamentos, tuitadas… Chamemos como quisermos. Tem a ver com spoken word e os beatniks tb.
Duas faixas jogam você para o lado do reggae. Duas outras faixas também te levam para andar de braços dados com o glam rock. Já em uma outra, o grose é de pura disco music. Você sempre ouviu muito estes gêneros ou são descobertas mais recentes?
Sempre ouvi muito isso tudo e mais um pouco que talvez as pessoas não saibam… (risos) Será que alguém sabe da minha coleção de Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga? Ou da minha paixão por Diana, uma cantora nordestina? Ou do quanto frequentei o Bar do Reggae, no Pelourinho, de como eu interagia e participava da cena independente de reggae de lá? O tanto que eu e banda ouvimos cumbia e ritmos latinos no camarim depois dos shows? Há tanto ainda para descobrir e deixar sair… A essência permanece e tudo se traduz através do rock, que é minha linguagem-mãe.
Sei que você sempre foi muito fã de Morrissey. Eu me lembrei disso porque adorei as palmas no contratempo da última faixa, “Submersa”, elemento que ele também usa em uma das faixas mais rockabilly (“Suffer The Little Children”) de seu álbum de covers, lançado no último mês maio. Entretanto, tudo não passa de uma coincidência, já que seu disco foi gravado e lançado um pouco antes…
Coincidência, nesse caso, sim, mas essa célula rítmica que aparece nas palmas em “Submersa” está presente em vários lugares da música indie, pop, alternativa. E também é um ritmo sincopado que encaixa bem com levadas latinas e caribenhas.
Como surgiu a ideia de samplear Dorival Caymmi e usar percussões produzidas pelo corpo na faixa de abertura “Bicho Solto”?
Eu e Rafa andamos numa pesquisa massa sobre samplese pedaços de coisas que pudéssemos usar. Ele tinha esse feelingque a batida do violão de “Noite de Temporal” poderia ser uma base interessante. Cortamos e eu comecei a pensar em cima daquilo. Me veio a ideia de um coro de lavadeiras, como a gente chama, que é um canto muito característico do Nordeste e do samba de recôncavo. É aquele contracanto, aquela resposta vocal que também acontece na ciranda, capoeira e em outros ritmos. Eu tinha um esboço da poesia da estrofe, arredondei um pouco a métrica mas não tanto, para ficar mais falada do que cantada mesmo. Mais rítmica do que melódica, em contraponto ao refrão. E a princípio pensamos em ser só samplee voz porque estávamos super querendo ser minimalistas, mas a gente não se aguenta… Hahaha… Na real, senti que para dar profundidade faltavam coisas. Gravei um piano mais pro grave, oitavado, pra servir de colchão. E comecei a pensar num paternque solfejei lá na hora pensando que talvez algum instrumento de percussão fizesse. Gravei pra deixar a ideia registrada e percebemos que uma permissão vocal e corporal encaixaria bem e deixaria a coisa ainda mais crua e orgânica, como a gente queria. Mais humano, usar o próprio corpo como instrumento, que é uma pesquisa que adoro também e que tem a ver com Bjork, Mike Patton. Aqui no Brasil o Barbatuques faz isso com muita maestria.
Como surgiu a ideia de regravar “Motor”, do Maglore (cujo arranjo lembra muito uma Jovem Guarda atualizada para meio século depois, por sinal)?
Sempre achei essa música linda. Rafa Ramos vivia dizendo que achava que ela encaixaria muito na minha voz e interpretação. Quando ensaiei pela primeira vez, saí arrepiada e com lágrimas nos olhos. Bateu forte mesmo. Ali tive a certeza de que eu tinha que gravar essa música. Pensamos realmente nesse arranjo que remetesse à música brasileira psicodélica que a gente tanto ama. Tem até flanger numa virada de bateria, como o Led Zeppelin faria… (risos) E ao mesmo tempo deixamos ela bem crua. É banda tocando ao vivo nessa base. Os overdubs de orquestra a gente pesou depois, pra trazer a intensidade no final quando a canção cresce pro refrão final. Ali pensamos em Tropicalismo, Duprat, cordas e sopro timbradas com muito cuidado. E, sim, é uma música para 2019.
E a ideia de registrar a música de seu ex-guitarrista Peu, falecido em 2013?
Peu deixou uma obra incrível, muitas coisas que ele não gravou. Desde sempre venho trocando ideia com Monique e Ananda, mulher e filha de Peu, e tinha essa vontade de registrar uma composição dele em algum momento. Essa música, em especial, tanto Rafa quanto Ananda falavam que achavam minha cara. E eu também achei. Nós tínhamos um jeito massa de compor juntos e achei nessa canção essa intersecção. É uma homenagem justa à um artista incrível e que faz parte dessa história de Matriz. Ajuda a contar a história do disco. Tinha tudo a ver.
Além de gravar Peu e Maglore, outros artistas baianos (Russo Passapusso e BaianaSystem, Lazzo Matumbi, Larissa Luz) participam em algumas faixas. A Bahia também é citada de outras formas, como em título, versos e até no sample de Dorival Caymmi. Reconectar-se às suas origens é o ponto principal deste disco. Mas o que eu pergunto aqui é uma outra coisa: dá orgulho em mostrar que a Bahia sempre foi um estado muito rock’n’roll ao contrário do que muita gente pode imaginar?
Dá, sim! É um estado muito diverso, na verdade. De muitas bandas de rock de estilos completamente diferentes, do hardcore ao “rock setenta”. E, hoje, de uma cena muito rica independente que consegue ter um discurso e postura contundentes usando elementos da cultura local. Coisa pesada mesmo, grave brocando, texto foda. Galera do rap em Salvador também está bem pesada. E Larissa e Baiana, Attoxxá, Baco, Vandal têm representado essa Bahia “lado B”, digamos assim. Que é a de onde eu vim e com a qual sempre me identifiquei. É a nossa Bahia. E é muito bom poder falar dela para além dos estereótipos.
Por falar em rock baiano, este próximo dia 21 de agosto marcará os trinta anos da morte de Raul Seixas. No que ele faz muita falta hoje em relação não só a composições, mas à atitude na música e na indústria fonográfica?
Na liberdade, no compromisso com a arte e com ser fiel a si mesmo enquanto artista. Aquele bom e velho f***-se que todo mundo tem que resguardar dentro de si pra não virar somente gado.
Show com a cantora e compositora Pitty. Abertura do grupo curitibano Mulamba. Live Curitiba (Rua Itajubá, 143, Novo Mundo). Sábado, 3 de agosto de 2019. Início previsto para a meia-noite. Clique aqui para ter mais informações sobre ingressos.