A pandemia do novo coronavírus obrigou tradições populares de norte a sul do País a se reinventar. A realidade se impôs sobre as mais variadas expressões do patrimônio imaterial brasileiro, da culinária às celebrações religiosas. Nesta semana, em 4 de agosto, completam-se 20 anos da instituição da política de reconhecimento da cultura popular nacional. A data coincide com o momento em que as comunidades responsáveis por essas tradições estão tendo de adaptar suas atividades, algumas com mais facilidade, outras com percalços pelo caminho.

É o caso das Baianas do Acarajé. Espalhadas não apenas pelo Estado da Bahia, mas por todo o País, elas viram a clientela diminuir ao não poderem mais vender os quitutes nos seus famosos tabuleiros, em espaços públicos, como largos, praças e feiras. Foi para contornar essa dificuldade que Rosa Perdigão, coordenadora regional do Rio de Janeiro da Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Mingau, Receptivos e Similares (Abam), tomou a iniciativa de estimular a venda por delivery a partir de aplicativos.

Depois que a pandemia ganhou força no Brasil, Rosa conta que foram necessários cerca de 30 dias para que conseguissem passar por um processo de adaptação. Nesse período, ela se reuniu com a Prefeitura do Rio para criar o selo Baiana em Casa, que assegura a devida procedência do alimento. “Na associação, eu sou a mais nova, tenho 32 anos. Muitas senhoras, acima dos 50 anos, tinham medo de se associar aos aplicativos. Mas foi uma grande vitória aqui no Rio: das 68 baianas filiadas, 20 se mantiveram no delivery”, relata Rosa, proprietária do empreendimento Cheirinho de Dendê.

Com a flexibilização da quarentena, algumas baianas já estão voltando para o comércio, mas muitas delas preferem manter as vendas pela internet. “A gente tem um público menor do que quando está tendo contato e um afeto maior com as pessoas. A vontade é grande, mas eu não pretendo voltar às ruas neste momento. Além do vírus, me preocupo com o uso do álcool em gel, que é superinflamável e pode gerar um acidente enquanto estamos fritando o acarajé.” Assim, a aposta em estratégias de divulgação dos produtos pelas redes sociais vem sendo redobrada. “Nesta semana, eu já estou pensando no que será o meu diferencial para o Dia dos Pais”, conta Rosa.

Encontros virtuais têm sido a saída para a confraternização e as trocas de conhecimento entre as baianas. “Nós nos encontrávamos quinzenalmente. Muitas das baianas mais velhas estavam sentindo falta, ficando depressivas, então sentimos a necessidade de fazer encontros pelo Zoom ao menos uma vez por mês”, explica a coordenadora. “Em breve, nós faremos também um seminário para discutir as principais demandas e avaliar como está sendo o retorno às ruas. Aqui, com jogo de cintura, consegui que as 68 baianas não ficassem sem alimento em casa, mas, na Bahia, são cerca de 4 mil. Precisamos discutir ações e campanhas para ajudá-las.”

Reconhecimento

O Ofício das Baianas é apenas um dos 48 bens considerados oficialmente Patrimônio Imaterial Brasileiro, dos quais seis são tidos pela Unesco como Patrimônio da Humanidade, como o frevo pernambucano e o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, no Pará. “Embora Mário de Andrade já tivesse pretendido tratar essas manifestações culturais como patrimônio, isso só foi possível com a Constituição de 1988, depois de muita reivindicação. Mas nós celebramos em 2000, porque foi quando o instituto jurídico foi regulamentado”, explica Hermano Fabrício Oliveira Guanais e Queiroz, diretor do Departamento de Patrimônio Imaterial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

De acordo com ele, a ideia de patrimônio antes não contemplava “os sujeitos”. A regulamentação daquele novo instrumento “trouxe para o centro não as coisas, mas as pessoas como seres inventivos”. A iniciativa virou referência internacional. Em 2003, a convenção da Unesco baseou-se na política brasileira e teve sua reunião preparatória no Rio de Janeiro. Além disso, especialistas daqui foram a Paris para ajudar a elaborar o documento. “Até hoje, diferentes países, como Coreia, México e Espanha, buscam o Iphan para conhecer os nossos mecanismos”, relata Queiroz, ressaltando que a diversidade cultural “riquíssima” do Brasil contribuiu para tal fama.

“O reconhecimento como patrimônio imaterial não envolve só a titulação; é um pacto que as comunidades selam com o Estado para ações de fortalecimento e de articulação com outros órgãos do poder público”, explica o diretor, destacando a autonomia dada aos detentores dos bens. É nessa lógica que se dão as ações de salvaguarda dedicadas à manutenção da transmissão dos conhecimentos entre as gerações. Uma manifestação popular que ganhou atenção, por exemplo, foi o samba de roda do Recôncavo Baiano, com a criação de oficinas para despertar o interesse entre os mais jovens.

Esse caráter de mediação aparece também agora, quando as comunidades enfrentam a situação de pandemia. Para assegurar a transmissão de saberes entre os capoeiristas, o órgão articulou, por exemplo, o contato com empresas que pudessem ajudar na transmissão ao vivo das oficinas que já eram realizadas presencialmente. Também lançou a ação Patrimônio Cultural #Em Casa, auxiliando diferentes grupos na produção de lives.

Secular

Umas das expressões que marcaram a ação virtual promovida pelo Iphan foi o Marabaixo, com a realização de uma live no mês de maio. Típica das comunidades do Amapá, a tradição afro-brasileira foi representada pela marabaixeira Danniela Ramos, bisneta do mestre precursor Julião Ramos e neta de Tia Biló, considerada a matriarca do Marabaixo do bairro do Laguinho, em Macapá.

“O ciclo do Marabaixo é uma tradição secular, de homenagem ao Divino Espírito Santo e à Santíssima Trindade. Começa na Semana Santa e termina no Domingo do Senhor. Foi um impacto muito grande não podermos fazer as louvações através da festividade, com o toque da caixa e a entoação das nossas cantigas”, comenta Danniela.

A marabaixeira vê com bons olhos a possibilidade de levar a tradição às pessoas de modo virtual. “Tivemos de aprender a lidar melhor com esse mecanismo. O bom é que conseguimos um alcance maior. O público interage, comenta, pede música, e nós aproveitamos para falar da história do ciclo e dos rituais.”

O uso das plataformas digitais deve ser mantido após a pandemia, mas Danniela não deixa de apontar perdas significativas. “Quando realizamos a primeira live, nos emocionamos, sentindo a falta de estarmos juntos presencialmente, pois costuma ser um momento de encontro e de muita religiosidade.” E complementa: “Principalmente aquelas personalidades de mais idade, como o rezador de ladainha, muitos não conseguem se adequar a essa realidade”. A própria avó de Danniela é um exemplo disso: “Ela tem 95 anos, já perdeu a visão, mas é muito lúcida. Agora, ela chora frequentemente porque não houve a festividade”.

Literatura

Algumas manifestações culturais têm sofrido menos os impactos das restrições trazidas pela pandemia. Beth Costa, chefe do setor de pesquisa do Centro Nacional de Folclore Popular, destaca que o Cordel “talvez seja o menos afetado” no momento. Ela lembra que tal expressão sempre teve a sua “morte anunciada” diante dos avanços tecnológicos, como a criação do rádio e da televisão. Da origem ligada à declamação em praça pública, o Cordel, ao longo do tempo, apropriou-se facilmente dos diferentes meios de comunicação.

“Com a internet foi uma festa. Os cordelistas já usam blogs e sites há um bom tempo. O problema é a inclusão digital: muitos deles estão em locais sem sinal de satélite, mas isso tem menos a ver com Cordel do que com a própria sociedade brasileira.”

As preocupações de Beth com o momento têm relação com o que ela descreve como uma “perda da simbologia”. “O carnaval não acontece por acaso antes da Quaresma. Faz parte de seu significado. O adiamento faz dele simplesmente um espetáculo. Não é o mesmo que cancelar o Lollapalooza ou o Rock in Rio”, diz. Sem desconsiderar que essas mudanças de data envolvem a sobrevivência de quem organiza tais festividades, ela ressalta que ocorre um “esvaziamento de sentido”, já que muitas das manifestações são “parte intrínseca” do modo de vida das comunidades.

Esse tipo de perda, neste momento excepcional, pode ser inevitável. Mas, em última instância, o que conta mesmo, com ou sem pandemia, é o envolvimento das comunidades. “Essas culturas são tão vivas e maleáveis que conseguem rapidamente se adaptar e sobreviver. A única forma de chegarem ao fim é o desinteresse dos detentores em sua continuidade”, sentencia Queiroz. Se depender do empenho demonstrado por elas, não será esse o desfecho.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.