O que falar aqui de Os Bem-Intencionados? Difícil. Resolvi perguntar logo na saída do espetáculo a algumas pessoas. A primeira reposta foi: “Não entendi, mas gostei. Inclusive uma atriz do Festival, ao entrarmos, disse que eu provavelmente não iria me identificar, sabe?” Outra pessoa, em seguida fala: “Me senti muito bem naquele lugar e, nossa, o que é o corpo deles? O que é aquilo?”. E a terceira: “Eu entendi que, quando se bebe, se faz aquilo ali mesmo!” Acabamos por formar um grupo e, à medida que alguém ia falando uma sensação, os outros concordavam e acrescentavam. Por vezes é para sentir na solidão, mas acho que toda obra de arte deveria vir acompanhada de um kit rodinha de conversa. Na minha, contribuí contando como surgiu e como foi o processo inicial de composição. Essas pessoas passaram a gostar mais de teatro e se tornar fãs do Lume. Então, agradeço a todos da minha rodinha por me ajudarem a construir esse olhar.

Brindar ao tempero dos anos

Quem veio ao “salão de festas” montado no galpão do Cietep entrou também num espaço de bailes brega de interior, não definido entre agora e os anos 70. Recepcionados pelos atores, os espectadores foram distribuídos por várias mesas, com direito a pequenas porções de azeitonas e amendoins. Ambiente muito à vontade para deixar ligados celulares e câmeras. Em certo momento somos convidados a conhecer, pela narrativa de cada ator, a chegada e o que faz ali cada um dos personagens, todos pertencentes a um grupo musical amador (mas com CNPJ).  Como “cada um vê o que quer ver”, ou o que pode ver, me vi dentro de um filme: o baile.

Em seguida, um dos atores irá contar, pensamentos e sensações daquelas pessoas que ali  vêm, sempre, toda semana, talvez durante anos, aplacar a solidão do coração. Durante algum tempo este velho narrador cantará velhas músicas, ao mesmo tempo suas memórias e fundo sonoro das cenas que, nesse tempo, envolvem seus companheiros com o salão. Em algum instante cairá ao chão, será cercado pelos outros e absorvido pela história comum.

De novo, do começo. Somos convidados pelos atores a assistir a chegada de cada um dos personagens ao salão: de repente estão ali figurino, peruca, corpo e voz, acima de tudo a alma. Quem são eles não saberemos, mas como são, à medida que bebem, desconfiamos: parecidos com alguém que conhecemos e parecidos conosco na medida em que se desnudam.

De novo, do começo. Somos convidados pelos simpáticos personagens a partilhar com eles das coisas pitorescas de que são feitos: mais que caricaturas, clowns: a irresistível empatia do clown, tão denso em sua leveza. São cenas engraçadas, muitas. São frases perdidas, algumas, que se repetirão depois, no “de repente”. Sim, há alguns “de repente” na dramaturgia de grace passô. E nesse “de repente” quando percebemos tudo mudou, já estava ali no entreriso um sofrimento que passa  a ser desvelado. Para, em seguida, o salão de baile voltar a estrelar.

E do que se fala mesmo na peça? Eu pensei que, pelo que li,  essa “banda”, esses artistas, iriam cantar. Ou iriam falar sobre ser artista, sobre sei lá o que. Mas nós chegamos, eles chegaram e coisas aconteceram: dançaram, conversaram conosco e entre si, ouvimos música, precisaramm seduzir e se sentirem amados… Afinal, o que acontece mesmo em um salão de baile para onde se vai aplacar a solidão do coração. Eles se dizem artistas, eles se reconhecem assim, eles precisam que compartilhemos disso. E nós?

De novo, no começo. Somos recebidos pelos atores do Lume. Eles apresentarão os personas e jamais sairão dali. Oferecerão sua presença, seu olhar para dentro das máscaras e, penso, para dentro de nós. E, nas próximas 2 horas, compartilharão seus 27 anos de mergulho vertical em si na arte, através de grandes mestres. Aí está todo o tempero que ilumina o salão, que culmina num quase oferecer-se em sacrifício e num ritual final que me remete à sensação do início não do espetáculo, mas da trajetória.

Difícil de falar, mas a gente fala

Difícil definir, enquadrar ou falar sobre um espetáculo contemporâneo. Hoje, mais que sempre, “cada um  vê o que quer ver, e o que pode ver”. Além disso, num espetáculo original, autoral, ao tentar classificar a gente se sente como o psicanalista tentando explicar o artista. Como a gente não é psicanalista, não dá. Se você me perguntar se gostei de Os Bem-Intencionados, vou dizer hoje que sim e que não. Não é dos que me seduzem, como o foi com alguns trabalhos de clown do Lume que estiveram por aqui há algum tempo. Mas é um tamanho caleidoscópio de pequenas sensações que, não duvido, posso dizer outra coisa quando, em alguns dias, algumas delas explodirem dentro de mim.

Confira a programação completa do Festival de Teatro de Curitiba aqui.