Comédia romântica em um mundo sem os Beatles
Cotação: ★★½
O que caracteriza uma comédia romântica? Basicamente é uma série de empecilhos que um casal enfrenta para ficar junto durante o desenrolar da trama, enquanto o público fica torcendo e shipando para o casal enfim se formar e deixar o filme com aquele final feliz e açucarado que muita gente gosta. Depois do sucesso de Harry & Sally – Feitos um Para o Outro, em 1989, este subgênero teve uma alta nas telas, emplacando vários sucessos de bilheterias, sobretudo durante os anos 1990. Hoje, mesmo em baixa, a comédia romântica volta e meia teima em reaparecer nas telas, em novas tentativas de retorno ao apogeu.
O britânico Richard Curtis tornou-se sinônimo de sucesso das comédias românticas. Escreveu filmes como Quatro Casamentos e Um Funeral (1994), Um Lugar Chamado Notting Hill (1999), Simplesmente Amor (2003) e Questão de Tempo (2013), tendo inclusive dirigido os dois últimos. Ele é o nome chave por trás dos créditos do novíssimo Yesterday, que chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira. Além de roteirizar o filme, Curtis é um dos produtores, ao lado do também diretor Danny Boyle (dos dois Trainspotting, Cova Rasa, 127 Horas, A Praia, Extermínio, Por Uma Vida Menos Ordináriae o oscarizado Quem Quer Ser um Milionário?). Não bastasse a união dos dois, a premissa da história também era bastante esperada: afinal, o que aconteceria no mundo se os Beatles não tivessem existido?
Contudo, o que prometia entregar um grande filme vai frustrando as expectativas no decorrer da transmissão. Como uma comédia romântica tudo corre bem, do começo ao fim. Jack Malik (Himesh Patel) é um jovem com uma talentosa veia musical. Toca violão, guitarra e piano. Canta bem. Compõe suas próprias músicas. Enquanto trabalha como repositor de estoque em um hipermercado em Suffolk, alimenta o sonho de ser uma estrela do rock. Pôsteres colados na parede do quarto, uma grande coleção de discos de vinil e camisetas coloridas revelam sua adoração por artistas como Beatles, Oasis, Radiohead, Killers, David Bowie e Fratellis. Entretanto ninguém dá muita bola para a sua arte. Uma das raras exceções é a amiga Ellie (Lily James, estrela em ascensão no cinema pop britânico dos últimos anos). Enquanto trabalha dando aulas para adolescentes em uma escola, ela faz as vezes de empresária de Jack, marcando shows, conseguindo entrevistas e gravações em estúdios. Não é só porque acha lindas as suas canções, mas também porque alimenta uma paixão ainda não correspondida por ele.
O problema (grande problema, aliás!) aparece quando os Beatles começam a interferir na vida de Jack. Ou melhor, as músicas dos Beatles. Já que, como ninguém sabe quem são/foram John Lennon, Paul McCartney George Harrison e Ringo Starr, Malik apropria-se de vários hits dos Fab Four e, assim, vê deslanchar a carreira. Até ser descoberto por Ed Sheeran (que participa como ator coadjuvante, fazendo o papel dele mesmo!) e sua empresária. O popstar ruivo, maravilhado com a beleza das canções que nunca havia ouvido antes, faz a ele o convite de ser a atração de abertura de vários concertos pela Europa. Já Debra Hammer (a comediante Kate McKinnon, ótima durante as tiradas ácidas que explicitam os métodos sem escrúpulos que regem o dia a dia no capitalismo da indústria do disco e do entretenimento). Quando o protagonista abandona sua vidinha pacata na casa dos pais para mergulhar de cabeça no mundo do showbiz, começam a ser construídos uma série de absurdos inverossímeis para ajudar a sustentar a trama durante o período de afastamento do casal.
Boyle até tenta dar uma mãozinha imprimindo um ritmo mais rápido na montagem, chegando até a utilizar recursos visuais inspirados em aplicativos e redes sociais. A questão é vai ficando cada vez mais difícil para o espectador conseguir acreditar em coisas que vão acontecendo. Como um brevíssimo apagão mundial pode deletar os Beatles da História é o de menos, porque junto com o quarteto também somem sem deixar qualquer rastro, inclusive no Google! – como cigarros, Coca-Cola, Harry Potter e o grupo Oasis, elementos estes que, de uma maneira ou outra, estão ligados à vida de Jack. O que isso desencadeia provoca umas pontas soltas que no final da história ou ficam desamarradas ou são resolvidas de maneira inverossímil.
Yesterday não é de todo ruim. Tem ótima trilha sonora, mesmo selecionado algumas das mais chatas ou óbvias canções do repertório da banda, como “Hey Jude” e “Ob-La-Di Ob-La-Da”. Também dá umas boas cutucadas em questões sociais britânicas (será que ninguém dá bola para a obra autoral de Malik justamente porque ele é descendente de indianos?), o culto à celebridade hiperacelerado pelas plataformas da internet (por que a música beatleniana de Jack só começa a despertar paixão e histeria coletiva depois de ser disponibilizada online, com sua imagem meticulosamente retrabalhada por empresária e estilista?) e a mais completa falta de senso e noção das grandes corporações da indústria fonográfica (o que são, por exemplo, as capas dos singlespropostas pelo executivo da gravadora?). Contudo, o filme chega ao final parecendo que suas resoluções insistem mais em obedecer à fórmula de sucesso de uma comédia romântica. Não se tenta, nem um pouco, trilhar por um caminho tão original quanto o mote central do roteiro.
O que é uma pena. Se poderia ser algo original e ousado, Yesterday se revela uma obra bem preguiçosa, que desperdiça grandes trunfos (Beatles, Danny Boyle) e não evita a decepção no caminho de retorno para casa.
Yesterday (Reino Unido, 2019). Direção: Danny Boyle. Roteiro: Richard Curtis. Com Himesh Patel, Lily James, Joel Fry, Ed Sheeran, Debra McKinnon. 116 minutos. Universal Pictures. Estreia nos cinemas brasileiros: 29 de agosto de 2019.