Quadrinhos que andam como o fio do vento
Camilo Solano é um dos nomes mais interessantes surgidos no universo das HQs nacionais nesta década. Amigo pessoal do ícone dos quadrinhos contraculturais norte-americanas Robert Crumb e criador compulsivo a ponto de escrever, desenhar e publicar cinco títulos de 2013 para cá, sendo as três primeiras de forma 100% independente, ele agora apresenta aquela que é sua produção mais ousada até então: a graphic novel O Fio do Vento (Editora Veneta, 100 páginas).
Horas antes de embarcar para Curitiba, onde lança na Itiban neste sábado à tarde a mais recente obra (mais informações sobre o evento você tem aqui), ele conversou com o Ric Maisa respeito do livro, sua relação de admiração e amizade com Crumb e a paixão pela música, que sempre aparece retratada nas histórias que assina.
Produção intensa
“Sempre fui obcecado por desenho. Não sei se a palavra pró-ativo seria a melhor para definir, acho é mais uma obsessão mesmo. Estou sempre desenhando, sem parar. Faço isso desde garoto. Tanto que hoje também trabalho com ilustração. Neste exato momento em que estamos conversando estou trabalhando em uma animação. São personagens de um filme que está bem no começo. Só não posso ainda contar muita coisa sobre isso, a não ser dizer que é um clássico dos anos 2000.”
O Fio do Vento
“Da ideia à conclusão foi tudo muito rápido. Não levou nem um ano. Eu me espantei com a velocidade. Fiquei maluco quando o Rogério de Campos, editor da Veneta, me chamou para publicar por uma casa que aposta em obras conceituais. Só que quando o convite aconteceu eu não tinha nenhuma coisa já pronta, a não ser alguns rabiscos que ainda precisava completar. Só quis sempre quis fazer uma história de assovio. Meu quadrinho parte da observação dos costumes e do comportamento das pessoas. Então usei isso junto ao conceito da narrativa de quebra de expectativa. Que vai mudando de personagem principal aqui e ali, assim como o sopro do vento.”
História de cidade grande
“Moro na capital paulista há apenas quatro anos mais ou menos. É impressionante como tenho muitos amigos daqui que não são de São Paulo como eu: nasci em São Manuel, interior paulista, de onde também era a dupla Tonico & Tonico. É dito que São Paulo é uma cidade de todos mas também cobra uma adaptação bem difícil no começo. Então queria abordar em O Fio do Ventoeste tipo de vida na metrópole. Ao mesmo tempo em que ela é cosmopolita e incrível, também apresenta crueza, solidão e falta de perspectivas. Quem está por aqui precisa de um motivo para se agarrar e isto também está lá na história.”
Relações pessoais
“Sofremos todos de uma solidão coletiva em São Paulo e isso também está no livro o tempo inteiro. Tentei falar de relações novas e antigas entre duas pessoas, incluindo a família. Tem os amigos que trabalham juntos na mesma rádio e tocam na mesma banda. O pai e o filho. O transplantado e o doador. O porteiro e o morador do prédio. Aliás é interessante o fato de até hoje eu ter contato com o porteiro do primeiro prédio que morei aqui. Ele é um senhorzinho de uns 70 anos e a gente se fala pelo WhatsApp. Ele vive me mandando aquelas mensagens com cachorrinhos dando bom dia. Também está bem presente na história a relação familiar. Eu sempre volto para o interior para ficar com minha família. Quase todo fim de semana. A ideia da relação entre corpo e cabeça veio da irmã da minha namorada, que há dois anos fez um transplante de rim.”
Paixão pela música
“Meu pai trabalhou em rádio uma vida toda, ele teve uma emissora comunitária. Então cresci com uma grande coleção de discos em casa e ouvindo muita coisa que tocava nesta rádio. A citação ao Ray Conniff vem daí. Também falo do Dr John, do qual passei a gostar já adulto. Aliás, na minha obra anterior, Semilunar, as canções que ali estão foram compostas por mim especialmente para os quadrinhos. Mas eu quis fazer agora também uma intertextualidade entre a questão da música e a mídias das HQs. No começo, quando o diálogo se passa na estação de rádio, o apresentador diz que ele quer lutar por uma coisa que muita gente pode considerar antiga e obsoleta hoje em dia. Isto é o que pensam dos quadrinhos por aí também. Mas eu quero produzir e provar que ainda pode render obras incríveis. Fui recente a uma masterclass onde foi falado que as HQs são a arte que todas as outras belas artes rejeitaram. Então elas são o punk rock da academia.”
Páginas em preto e branco
“Foi uma ideia do Rogerio. Achei legal porque sugere uma retomada aos meus primeiros quadrinhos. Também proporciona uma linguagem legal e torna a obra mais fácil de mostrar fora do país e ser vendida. O colorido também tem seu apelo visual, mas para apostar lá fora em um nome em que o mercado ainda não conhece muito bem é arriscado o investimento em uma coisa cara. E o uso da cor nas páginas requer quatro chapas de impressão para cada uma delas. Já para o preto e branco é necessário apenas uma.”
Amizade com Robert Crumb
“Ele sempre foi uma das minhas maiores influências e, claro, temos também influências em comum, como Wally Wood e os desenhos de Harvey Kurtzman para a Mad nos anos 1950. Crumb nunca fez quadrinhos de super-herói, ele sempre contou o dia a dia das pessoas. Quando soube que ele viria para a Flip (Feira Literária Interacional de Paraty) em 2010, eu ainda fazia faculdade de Design mas precisava muito ir de Bauru a Paraty. Então fomos eu, meu irmão e minha mãe encaramos uma viagem de nove horas de carro. Chegamos lá, dei uma de stalkermesmo e descobri a pousada na qual ele estava hospedado. Nesta época ele andava bem recluso, não queria ver quase ninguém. Escrevi um bilhetinho contando da minha admiração e da longa viagem que eu fiz só para poder falar com ele. Na hora o rapaz da recepção foi entregar o papel e não é que ele logo desceu para falar comigo? Ficamos um bom tempo conversando ali e passamos depois a trocar cartas, um escrevendo para o outro. Sempre que podia mandava discos de música brasileira, coisa que sei ele adora. Enviei um disco do Tonico & Tinoco que ele adorou. Daí a coisa foi ficando cada vez mais séria até que fui agora para lá com meu irmão Aldo Solano, que também faz quadrinhos. Passamos um tempo na França e ficamos três dias lá na residência dele, em um vilarejo medieval no sul do país. Engraçado que da França não gostei muito, mas amei a casa do Crumb. Ela é gigante, tem quatro andares, está lotada de coisas. Sua coleção de discos de vinil é uma maravilha e a família é linda demais. Sua mulher Aline, que também é quadrinista, é maravilhosa. Crumb gosta muito do meu irmão, aliás. E o que eu mais aprendi nesta amizade com ele é vê-lo como uma pessoa bastante humildade. Existe aquela ideia de que quando a gente conhece nossos ídolos acaba percebendo como grande parte deles são babacas. Mas Crumb, não. Poxa, ele foi um dos caras que mudou a história mundial dos quadrinhos. Tem uma alegria de viver incrível, também é muito bem humorado e antenado com o mundo. Aliás, está bastante preocupado com o que estamos vivendo atualmente no Brasil.”