Pelas sombras da cidade
“A hora em que você cansar, dá para a mãe que a mãe leva!”.
Ao ouvir esta frase, virei-me e mantive meus olhos fitos na cena.
Um menino de uns oito anos, não mais, puxava um carrinho pesado.
Na carroceria, recipientes de plástico, metal e afins, formavam a carga.
Ao lado do menino, uma mulher muito magra caminhava com um bebê nos braços.
Logo atrás, outras duas crianças (um menino e uma menina), formavam a caravana.
Eles iam pela noite. Cheio de responsabilidades, o garoto puxava o carrinho com vontade.
Munida de toda candura, a mãe lhe dava força com palavras e se mostrava à disposição:
“A hora em que você cansar, dá para a mãe que a mãe leva!”, dizia, como numa oração.
Nada sei daquela família que seguia seu caminho pelas sombras da cidade.
O carrinho de recicláveis rangia, mas o menino era resistente e não sucumbia.
Para ele, era motivo de orgulho, de honra ajudar a mãe e os irmãos.
Atravessaram a avenida e prosseguiram com a peregrinação, a meu ver, dolorida.
Talvez eu nunca mais os veja. Talvez a história deles não interesse a ninguém.
Só mais uma família de miseráveis iguais às outras tantas por aí, pelas ruas, estradas.
Mas a cena entrou em minha cabeça e ficou como um vírus, como um repicar de sino.
Fui para casa, mas não via sentido algum no ato de retornar, de viver em segurança.
O quadro daquelas pessoas, membros da mesma família dividindo o nada, permaneceu.
Rolei na cama a noite toda. Nada de sono. Apenas pesadelos insanos, devaneios.
Uma tempestade desabou sobre a cidade. Como estaria a família? Culpa!
Há quanto tempo aquele menino arrastava o carrinho? Não sei. Remorso!
Não sei, nem saberei se algum deles havia comido durante o dia todo.
Será que a mãe ainda amamentava o bebê? De onde ela retirava forças?
E o pai ou pais daquelas crianças, por onde andava ou andavam?
Perguntas, questionamentos, elucubrações que a nada levam.
Tomei um analgésico forte para passar a dor de cabeça.
Um relâmpago fez tudo clarear e, em seguida, um estrondo de tremer o chão.
Finalmente dormi um sono de desmaio. Acordei tarde. Ainda chovia forte.
A primeira lembrança que tomou conta da minha cabeça foi a da família pelas ruas.
O menino arrastando o pesado carrinho de lixo reciclável me incomodava muito mais.
A mãe com um bebê nos braços e outras duas crianças em seu encalço era saga dolorida.
A vida se esvaindo na falta de sonhos, perspectivas e oportunidades era a realidade.
E eu ali, como mero espectador daquela peça real ao relento em uma noite ventosa.
Senti meu rosto esquentar numa mescla de raiva, medo, vergonha a impotência.
Como num mantra, a voz da mãe retumbava em meu cérebro e em minha alma:
“A hora em que você cansar, dá para a mãe que a mãe leva!”. Morri mais um pouco.
Jossan Karsten