Papo de barbearia
Há mais de vinte anos, frequento o mesmo barbeiro, ou seja, desde quando cheguei à cidade, corto meu cabelo no mesmo estabelecimento que é formado por dois sócios e amigos. O salão, como costumam se referir à barbearia, foi aberto em 1996, dois anos antes de eu chegar aqui.
E como ocorre com as amizades de longa data, a cada encontro há sempre muito assunto a se discutir, a maioria deles, aleatórios, como futebol, o tempo, a política, as brigas de vizinhos e, por aí vai…
Na semana passada, quando fui cortar meu cabelo, a rotina não fugiu à regra. Um dos sócios precisou sair para um compromisso familiar e o outro, teve tarefa dobrada. Desta forma, eu que fui um dos últimos a chegar, só me sentei naquela cadeira quando já era noite alta.
Papo vai, papo vem, começamos a falar de trabalho, de família, essas coisas.
“E os livros?”, perguntou ele.
“Estão indo. Sempre escrevendo…”, respondi enquanto ele prendia a capa de proteção para iniciar o corte.
“Diga uma coisa: você gosta de trabalhar por conta, de ser autônomo?”, indaga ele. Eu respondo que não sou autônomo e que mantenho um emprego como a maioria dos brasileiros (que ainda têm trabalho).
“Eu digo dos livros”, retoma.
“Ah! Não digo que escrever livros é um trabalho autônomo. Eu encaro como um hobby. Mas nesse sentido, é legal sim, é tranquilo”, falo e ele começa a dar as primeiras tesouradas.
“Bem baixinho, como sempre?”, indaga, referindo-se ao corte.
“Sim. Como de costume”, respondo. E ele prossegue com seu trabalho (autônomo) e continua a falar.
Poucos minutos depois, eu entendo o porquê de ele tocar no assunto sobre trabalho autônomo. Não, não é porque ele é autônomo há mais de vinte anos. O fato é outro.
Pai de três filhos, duas mulheres e um homem, o barbeiro sempre deu conta do recado em se tratando de sustento familiar com seu trabalho por conta própria. Antes, foi funcionário de uma empresa madeireira, mas com a modernização dos equipamentos, as crises no setor e o inevitável corte de pessoal, foi dispensado das atividades, juntamente com o sócio que labutava por lá. Nesse meio tempo, enquanto recebiam o seguro-desemprego, os dois ouviram falar de um curso profissionalizante de cabeleireiro no Senac. Trocaram ideias e se matricularam, pois afinal, nada tinham a perder. No decorrer das aulas, tomaram gosto pelo ofício e, antes mesmo da conclusão do curso, decidiram montar uma barbearia.
“No começo, a gente passou muito medo. Nenhum de nós sabia como lidar com pessoas e como ter uma empresa, por mais que fosse uma coisa muito pequena”, contou-me o outro sócio, certa vez.
E os clientes foram chegando e tudo se ajeitou no decorrer das mais de duas décadas de trabalho. Não enriqueceram, mas têm condições confortáveis. Vivem com segurança.
Naquele momento, enquanto tesourava meu cabelo, eu tentei entender sobre o porquê de ele tocar no assunto de “trabalho autônomo”. Mas a resposta veio em seguida, quando eu perguntei sobre seu genro. (Uma das filhas dele é casada há alguns anos).
“E teu genro, está firme no Corpo de Bombeiros”, indaguei. O rapaz, antes mesmo de se casar, havia prestado concurso para a corporação e, ao que eu sabia, gostava muito de suas atividades.
“Pois então, rapaz! O meu genro não está mais no Corpo de Bombeiros. Eu achei loucura, mas ele pediu demissão para trabalhar por conta própria. A gente lá em casa, ficou com medo, mas ele disse que vai ser mais feliz. Ele é contador e montou um escritório aqui do lado do salão… Tomara que dê certo…”, sentenciou.
“Vai dar certo sim”, falei com toda sinceridade, pois sempre acreditei em quem se desafia, em quem corre riscos e vai além do pragmático.
Ele prosseguiu:
“Pensando bem, eu acho que ele está certo. Vai sofrer um pouco no começo, pois não é fácil encontrar clientes, mas depois, pode fazer as coisas por conta, sem ter que cumprir ordens rígidas e, ainda por cima, pode ganhar mais. ‘Concurso não é para mim’, ele me disse. Fazer o quê?…”, falou meio que desapontado.
Refresquei sua memória, lembrando que ele também era um trabalhador autônomo há muitos anos, e perguntei se hoje ele voltaria para suas antigas atividades.
“Jamais. Naquele meu trabalho na madeireira, eu quase perdi minha perna e os dois braços. Se eu continuasse, talvez estivesse morto ou aleijado, como aconteceu com muitos colegas que foram para empresas mais pobres, sem maquinário, depois da modernização”.
“Então…”, disse eu e emendei: “Não há o que temer pelo teu genro. Incentive-o para que siga em frente, para que se desafie e vá além, gerando empregos, conquistando clientes e fazendo a diferença em nossa sociedade”.
“Ah, e ele já contratou meu filho. Ele trabalha meio período com meu genro. Está aprendendo as coisas da contabilidade e está gostando”, contou, espanando os tocos de cabelo, retirando a capa dos meus ombros, dando por concluída sua tarefa.
“Então, tudo certo. Sucesso a todos vocês”, disse eu, estendendo uma nota de vinte reais ao barbeiro que me devolveu dois reais de troco.
Despedi-me, peguei minha bicicleta e saí da barbearia. No trajeto até em casa, refleti sobre o medo que as pessoas têm de ousar, de fazer diferente. E dentre esses medrosos, eu me incluo.
Por mais que eu tenha atividades paralelas, criando uma coisa ou outra na área literária, sempre procurei manter um pé no emprego formal, no que a maioria considera seguro.
E tantas foram as matérias que escrevi sobre empreendedorismo, sobre pessoas que abriram empresas, geraram empregos, mudaram de carreira. Já contei tantas histórias bonitas, mas nunca me vi sendo a pessoa do lado de lá, aquela personagem que joga tudo para o alto e refaz o caminho, que desconsidera a formalidade para abrir novos campos.
Mas será que estou fazendo a coisa certa? Será que a carteira de trabalho, em muitos momentos não se torna uma âncora, um incômodo que nos impede de alçar voos mais altos ou navegar em águas mais profundas e até turbulentas?
Nesses tempos em que vivemos, é preciso abstração, determinação, coragem e, sobretudo, ousadia para deixar o que é pragmático e pré-determinado de lado e seguir por caminhos desconhecidos. Muitas vezes, é necessário ter uma fé descomunal para não titubear quando for preciso abrir a própria estrada ao caminhar e resistir à dor dos calos nas mãos que tingem de sangue e lascas de pele o cabo da picareta. Eu não deixo de pensar nisso. E asseguro, que não vai ficar apenas no pensamento, na imaginação. Bola para frente. Que tal ser dono do próprio nariz?