Conheça a história de três mulheres que enfrentaram o abuso infantil com menos de 10 anos de idade
Há exatamente 48 anos, Araceli Cabrera Sánchez Crespo, de oito anos de idade, foi sequestrada, violentada e assassinada na cidade de Vitória, capital do Espírito Santo. Apesar de sua breve história, a menina deixou seu legado no Brasil: foi a partir do seu caso que a Lei 9.970/2000 determinou oficialmente 18 de maio como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
Araceli não foi a primeira e nem a última criança a passar por uma situação de vulnerabilidade. Segundo o Ministério Público (MP), atualmente, a cada uma hora, quatro crianças são violentadas sexualmente em nosso país.
“Eu tinha medo de morrer”
Sheylli Caleffi conta que sempre teve uma sensação de que algo de errado a assombrava. Já adulta, enfrentando muitas dificuldades em seus relacionamentos amorosos, a comunicadora decidiu procurar ajuda profissional quando entendeu tudo que havia guardado em sua mente: com cinco anos de idade, ela passou por um abuso que deixou marcas por toda a sua vida.
“Uma coisa é você ser adulto, saber o que é sexo e saber que uma pessoa está tentando fazer isso com você. Outra coisa é você ser uma criança, sentir que tem algo estranho acontecendo, mas não saber exatamente o que é”,
explica Sheylli.
Hoje, atuando por meio de suas redes sociais junto de outras vítimas da violência sexual, Sheylli explica que o fato de ter convivido tantos anos sem a lembrança clara do que havia lhe ocorrido – apenas com indícios de um problema maior – é algo muito comum entre as pessoas que passam por uma situação de vulnerabilidade quando ainda muito pequenas.
Isso ocorre, segundo ela, porque como o cérebro não consegue processar o que foi aquela situação. Ele simplesmente apaga, como uma forma de fazer com que você não sofra mais com a lembrança. Sheylli absorveu esses conceitos após alguns anos de terapia psicológica.
“Na terapia, lembrei que eu tinha muito medo de morrer. Não tinha medo de ser estuprada, eu era uma criança, achei que ele iria me matar. Fiquei muito desesperada na hora, mas eu não falei nada. Foi uma experiência tão traumática que eu simplesmente paralisei”,
se recorda.
Mesmo sendo uma cicatriz que, de acordo com Sheylli, ela levará consigo até o dia em que morrer, ao expor a sua história e incentivar que outras vítimas, tanto homens, quanto mulheres, expressem os seus traumas no grupo de apoio que ela fundou no Facebook – chamado “As incríveis mulheres que vão morrer duas vezes” – ela diz se sentir mais forte.
“As pessoas têm muito medo de lidar com quem diz ‘eu fui estuprada’, porque quando você admite que alguém foi estuprada, você admite que alguém a estuprou e se são quatro a cada hora, os estupradores estão em todos os lugares e isso é muito ruim de se admitir, não é mesmo?”
indaga a comunicadora.
Quando o trauma te faz atuar
A advogada criminalista Priscilla Motta foi abusada sexualmente aos 10 anos de idade. Sendo seu vizinho o agressor, Priscilla teve que se mudar da cidade onde morava no estado do Rio de Janeiro junto com seus pais.
Apesar de todo o trauma que carregou durante anos consigo mesma, levando até mesmo a pensar em suicídio quando jovem, ao escolher o curso para prestar vestibular, Priscilla não hesitou: escolheu Direito.
“Eu falo assim, cada criança que eu ajudo é como se eu estivesse ajudando a Priscilla de 10 anos, porque eu sei que é necessário. Se tivesse alguém como eu lá atrás, eu possivelmente não teria sido abusada”,
afirma a advogada.
Outra vítima do abuso sexual que utilizou sua história para se aproximar e proteger outras crianças de seus agressores é a mineira Vanessa Lima, fundadora do Movimento Infância Livre de Abuso (MILA).
Abusada pelo seu tio, Vanessa guardou sua história até o ano de 2019, quando ao ver uma reportagem disse não aguentar mais conviver em silêncio com aquela situação.
“A partir do momento que você usa as suas redes sociais para chamar atenção de um problema, você já cria um certo alerta. E eu acho que todo mundo tem essa obrigação de falar sobre o assunto. Em relação às vítimas, eu sempre digo falem, pode até demorar, mas falem. É uma autocura. A partir do momento que você coloca pra fora aquilo que aconteceu com você, você tira um peso da situação. Claro que você não vai esquecer, mas vai passar a falar com menos dor”.
comenta a ativista.
Um problema ainda não denunciado
Segundo os dados do Ministério da Saúde, apenas em 2018, 32 mil casos de violência sexual contra crianças e adolescentes foram denunciados. Órgãos oficiais acreditam que isso represente 10% da totalidade de abusos que ocorrem no Brasil.
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Com as medidas de isolamento impostas pela pandemia do novo coronavírus, segundo o Ministério Público do Paraná foi possível observar uma queda maior no número de procedimentos administrativos instaurados para promover ações de proteção na área de infância e juventude – não necessariamente ligados a abusos sexuais, mas a qualquer tipo de violação de direitos.
Em 2019, o total mensal de procedimentos dessa natureza oscilava entre 1,5 mil e 2 mil, enquanto em 2020 ficou na faixa de mil por mês, e no último mês de abril atingiu o menor número do período: 842 procedimentos.
Ao ser perguntado sobre sua atuação diante desses casos, a Secretaria Estadual da Justiça, Família e Trabalho do Paraná (SEJUF) disse promover a proteção, abrigo e programas que permitam o desenvolvimento físico, emocional, social e cognitivo das crianças até mesmo em meio a pandemia.
Em nota, a SEJUF afirmou que “uma ação conjunta com os 22 Escritórios Regionais da pasta [foi realizada] para sensibilizar e conscientizar a sociedade contra a violência infantil, principalmente nesse momento de isolamento social ocasionado pela pandemia do coronavírus. Foram distribuídas cartilhas, folders, cartazes e guias para orientação de como fazer a denúncia em todas as regiões do Estado.”
Denuncie
Havendo alguma suspeita de abuso ou exploração de menores, é possível fazer a denúncia por meio do canal Disque 100. A ligação é gratuita, funciona todos os dias da semana, por 24h, inclusive sábados, domingos e feriados.
Também é possível fazer a denúncia à Polícia Militar, pelo número 190, ou à Polícia Rodoviária Federal, pelo 191. O sigilo é garantido pelos órgãos responsáveis.
“Vamos ficar atentos a todo mundo que está perto das crianças. Tente tirar o seu preconceito do caminho, porque se não, você vai colocar a sua criança em risco”,
finaliza Sheylli.