“Todo artista tem de ir aonde o povo está”, diz a letra de Nos Bailes da Vida, um dos grandes sucessos de Milton Nascimento. Mantendo-se fiel a essa convicção, o cantor e compositor recorre ao único espaço em que os admiradores de sua obra podem vê-lo nesses tempos de pandemia, com teatros e casas de shows fechados: a internet. Por conta disso, amanhã não será um domingo qualquer. A partir de 18h30, Milton faz a primeira live transmitida em seu canal no YouTube, interpretando canções escolhidas pelo público.
O estímulo para fazer a live veio do filho do artista, Augusto. Resguardado em Minas, na cidade de Juiz de Fora, Milton conta que passa o tempo tocando violão, vendo filmes e programas de TV. Recentemente, teve uma bela surpresa ao ler pela primeira vez o roteiro de Jules e Jim – Uma Mulher Para Dois (1962), de François Truffaut. Foi depois de ver sucessivas exibições do filme, ao lado do amigo Márcio Borges, que ele decidiu ser compositor.
Mas a quarentena de Milton não é só de contemplação das mais diversas formas de arte. Nesta entrevista por e-mail ao Estadão, ele fala sobre sua relação com a tecnologia, contesta a conduta do governo federal em relação ao controle do novo coronavírus e afirma que a união contra o racismo que estimulou protestos pelo mundo precisa continuar.
Como surgiu a ideia de fazer essa Live?
Como a maioria das coisas que tenho feito ultimamente, essa também surgiu de conversas com meu filho Augusto, sempre aqui em casa, em Juiz de Fora. Tudo foi pensado sem muita cobrança de tempo e tal, e aos poucos nós fomos amadurecendo essa ideia. Estamos organizando todo esse processo com somente o necessário. Somando os músicos, acho que toda a equipe não deve passar de dez pessoas. E todos vão fazer os exames antes de entrar aqui em casa. O momento da pandemia é terrível, e temos de cumprir os protocolos de saúde com total seriedade. Então, levando isso em conta, vamos fazer de tudo para que esse show seja especial.
O que pode adiantar da live, você estará acompanhado por algum músico ou será voz e violão? Já definiu o repertório? Os fãs poderão pedir músicas?
Chamamos o nosso maestro Wilson Lopes para tocar os instrumentos de cordas, violão, guitarra. E possivelmente teremos um pianista também. E o repertório vai ser escolhido inteiro pelo público. Numa produção como essa, que vai ser vista por pessoas de diferentes lugares e idades, não tem jeito, a gente tem de cantar o gosto e a vontade do povo mesmo. Estamos fazendo uma campanha nas nossas redes e o pessoal é que vai escolher. Acho que chegamos a uma lista de 20 e poucas músicas, Clube da Esquina 2, Nada Será Como Antes, Tudo Que Você Podia Ser, Bola de Meia, Bola de Gude, enfim, só entraram os pedidos de fãs. Mas pode ser que tenha alguma surpresa.
Há postagens regulares nas suas redes sociais e recentemente em um vídeo você agradeceu aos 700 mil seguidores no Instagram. Como é sua relação com a tecnologia?
Olha, depois da minha mudança para Juiz de Fora, pela proximidade maior com meu filho, acho que eu me aproximei mais. Antes disso, nem celular eu tinha, e agora já tem um tempo que tenho um com meu número pessoal. E recebo ligações de voz e também de vídeo de alguns amigos, e também tenho ligado bastante para eles. É uma coisa que eu nunca fiz antes, além de também acompanhar mais de perto o lance das minhas redes e tal.
Como tem sido seu cotidiano neste momento em que é preciso se resguardar?
Meus últimos cento e poucos dias têm sido de quarentena máxima. A gente precisa entender um negócio, muita coisa depende dos nossos atos. O distanciamento social, o cuidado com o outro, o uso da máscara, tudo isso é importante. Ainda mais agora, que o pessoal aí parece não saber direito o que tá fazendo, né? Imagina só, o Brasil tá no ranking dos países com mais mortes no mundo e a gente não tem nem ministro da Saúde.
Qual composição sua você acha que tem a ver com este
momento? Por quê?
Nem preciso pensar muito, é a parceria com meu irmão
Ronaldo Bastos, Nada Será Como Antes.
Em entrevista recente ao Estadão, João Bosco disse que tudo que ele tem agora, em meio à pandemia, é o violão. Já Gilberto Gil disse que não conseguiria compor nada satisfatório neste momento. E você, tem se apegado ao violão ou o atual estado das coisas o afastou do instrumento em seu cotidiano?
Meu negócio aqui em casa é filme, música, violão e televisão, não muito nessa ordem, mas é por aí… E esta semana eu terminei um livro com o roteiro na íntegra de Jules e Jim, que eu nunca tinha lido. Achei sensacional poder ler o texto desse filme que tanto mudou minha vida.
Você foi um artista muito importante e presente na época das Diretas Já, com canções como ‘Coração de Estudante’ e ‘Nos Bailes da Vida’ servindo de trilha sonora do movimento. Qual sua avaliação do atual momento político, em que as pessoas estão divididas e há quem peça intervenção militar?
Além de tudo isso que estamos enfrentando com a pandemia, ainda temos de lidar com coisas desse tipo. Como eu disse antes, é uma situação terrível. E é muito importante que todos falem disso. O Brasil vive hoje um colapso. Todos os estudos científicos são completamente ignorados. A ciência é ignorada. E é ignorada justamente por quem deveria nos orientar. Temos um governo que não confia na ciência e isso é absurdo. Tenho dito isso em várias entrevistas: voltamos à idade média. A tragédia só aumenta, o abandono é geral. O panorama é de terror.
Após a morte de George Floyd nos Estados Unidos, protestos contra o racismo eclodiram nacionalmente e em outros países. Como você vê essas manifestações e a questão do racismo no Brasil?
É a nossa força que tá aí, eles acharam que passaria assim, sem nada, se enganaram. Agora é o seguinte, essa nossa união precisa continuar. A hora é agora. Na Missa dos Quilombos (celebração religiosa criada por dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra, com música de Milton), tem uma coisa que o dom Pedro Casaldáliga falava, e que é a melhor definição deste momento: “Está na hora de cantar o Quilombo que vem vindo, está na hora de celebrar a Missa dos Quilombos, em rebelde esperança, com todos os negros da África, os afros da América, os negros do mundo, na aliança com todos os pobres da Terra”.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.