O que João Carlos Martins tem feito durante o período de isolamento social provocado pela pandemia do coronavírus? Pela tela do computador, o pianista e maestro esboça um sorriso e mostra as mãos envoltas em duas luvas que desde junho do ano passado são como sua segunda pele. “Eu nunca mais vou ser o pianista de antigamente. Mas o prazer de poder sentar ao piano e estudar seis, sete horas por dia, o que não conseguia fazer havia 22 anos, mudou minha vida mais uma vez. Aos 27 anos, eu pensei em me suicidar. Hoje, amo a vida.”
A história de Martins completa nesta quinta-feira, 25, 80 anos, celebrados por uma live em que vai atuar com músicos da Bachiana Filarmônica Sesi-SP e artistas convidados. É uma história sobre tragédia e superação. Virtuose no início da carreira, sofreu uma sequência de acidentes que reduziram progressivamente o movimento das mãos. Ao todo, foram 24 operações até que ele abandonasse o piano e o trocasse pela regência. O abandono nunca foi completo, mesmo que ele pudesse usar poucos dedos, esboçando sempre um possível retorno ao instrumento. Retornos curtos, seguidos de novas despedidas, sempre capazes de atrair grande atenção midiática.
Mas em junho do ano passado, ele foi procurado por um rapaz chamado Ubiratan Bizarro após um concerto em Sumaré. O designer industrial havia desenvolvido o protótipo de uma luva que pudesse ajudar o pianista a tocar mais uma vez. “Eu senti o carinho de alguém que tinha se dado àquele trabalho, mas imaginei que não serviria para nada. Expliquei a ele que meus dedos simplesmente não voltavam ao lugar quando os movimentava. Mas ele insistiu. Seguimos nos encontrando e ele, inspirado na tecnologia da Fórmula 1, desenvolveu molas que faziam os dedos voltarem.”
Martins não gosta do termo superação. Prefere falar em teimosia. “Nos primeiros cinco minutos de cada dia, sou um velhinho que pensa: se eu morrer daqui a meia hora, tudo bem. Mas em seguida reaparece a criança feliz por fazer música”, ele conta. Foi uma percepção que surgiu com o tempo. Nos anos 1980, quando se afastou da arte de maneira definitiva, ele trabalhou como empresário e aproximou-se do mundo político, associado a Paulo Maluf. A associação lhe rendeu problemas na Justiça e o olhar torto do meio musical, que em parte ainda o vê com desconfiança, agora por suas escolhas artísticas. Martins sabe disso. Mas tem clareza a respeito de sua trajetória.
“Eu consigo identificar algumas fases. A primeira é a do pianista”, ele começa. Um pianista, ele diz, atrevido, capaz de corrigir Alberto Ginastera ao tocar uma de suas peças ou de buscar, ao interpretar a obra de Bach, um olhar acima de tudo pessoal. “Quando me aproximava da sua música, eu tinha que saber quem eu era perto de alguém como ele para poder ter coragem de me sentar ao seu lado.” Aos 64 anos, surgiu o maestro. “Eu fui estudar, começar outra vez. Isso exigiu coragem e humildade. Quando estou à frente de uma orquestra e cometo um erro, eu assumo. Fui gravar com a English Chamber Orchestra e no primeiro dia me equivoquei logo no início. Precisei ir ao camarim, olhar no espelho, e dizer: você dedicou sua vida a Bach, vai lá e mostra a que você veio. E foi o que eu fiz.”
A polêmica vem naquela que ele define como terceira fase – em que o objetivo é, em suas palavras, trabalhar em favor da democratização da música clássica. Com sua Bachiana, ele já se apresentou com a bateria da Vai-Vai, com Chitãozinho e Xororó e diversos outros artistas da música popular. Nada de novo aqui. A discussão é se esse repertório atrai de fato novo público para a música clássica ou se apenas para um repertório popular reimaginado pela linguagem sinfônica.
“Se você olhar o Bach que fiz com a bateria da Vai-Vai, as notas musicais são as mesmas”, diz Martins. “Mas de qualquer forma, os nossos concertos têm obras de Bach, Beethoven, Mozart, Brahms. E, quando acabam, não tenho problema em interagir com o público com o Trem das Onze, por exemplo. A criação de um novo público: é esse o meu perfil. Manter a tradição e inovar. Certa vez, programamos um concerto em Itaquera e, por um erro de divulgação, apareceram apenas 17 pessoas. Eu disse para os músicos: esse é o concerto mais importante da nossa vida. E aquelas 17 pessoas voltaram para casa movidas pela experiência, e o interesse fez com que nós logo retornássemos para tocar para milhares de pessoas.”
Martins traz os números na ponta da língua. Seus concertos já foram vistos por 17 milhões de pessoas, com a Bachiana tendo visitado 200 cidades em São Paulo e 400 em todo o Brasil. No projeto Orquestrando o Brasil, em que a equipe da orquestra orienta projetos já existentes, são 516 grupos parceiros. “O trabalho com os jovens tem quatro objetivos. O primeiro é colocar a música na vida das pessoas. O segundo é oferecer a música como hobby. O terceiro, capacitar músicos para orquestras. E o quarto, descobrir diamantes a serem lapidados”, ele explica. É o caso, diz, do tenor Jean William, ou do pianista Davi Campolongo, que o acompanham na live, realizada nos canais do Instagram e do YouTube do maestro a partir das 20 horas.
“Minha fase atual é a mais difícil. A música clássica mudou muito no Brasil com o projeto da Osesp e revelações como o Neojiba e Instituto Baccarelli, em Heliópolis, que trabalham a transformação por meio da música. Eu quero mais espaço para a música erudita, vou pisar no barro e na lama para conquistar isso. Antes do apagar das luzes, quero fazer o que Villa-Lobos um dia disse pretender: fechar o Brasil com um enorme coração. Meu pai lutou pela educação dos filhos. E prometi a ele que, um dia, quando nos reencontrássemos, eu poderia dizer a ele: deixei um legado.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.