Sem um plano nacional definido para enfrentar a covid-19, o Brasil está “empurrando com a barriga” o combate à doença, o que prolonga a epidemia no País, acredita o biólogo e colunista do jornal O Estado de S. Paulo Fernando Reinach. Ás vésperas de lançar seu terceiro livro, A Chegada do Novo Coronavírus ao Brasil (Companhia das Letras), com 27 colunas publicadas sobre a pandemia, ele resume, de forma crítica, a estratégia do País.
Em uma de suas primeiras colunas no período, o senhor falava: ‘Estamos perdendo tempo’. Isso foi no início da pandemia, no começo do ano. Agora, quase em julho, o senhor ainda acha que o Brasil perdeu tempo?
Acho que sim. Tudo é lento demais, até hoje as coisas não aconteceram. Nas minhas primeiras colunas, uma das primeiras era “Brincando com fogo” (dizendo) que ninguém estava ligando para nada no Brasil e que a coisa ia pegar fogo. Depois, teve colunas dizendo que precisava começar a testagem; até hoje, a gente não tem testagem. Depois, que iam faltar respiradores, e aí faltaram respiradores. Na verdade, as colunas eram resultado de eu acompanhar muito de perto o que estava acontecendo nos outros países, não é? E ver como o Brasil estava se mexendo. Até hoje, a gente não tem controle da pandemia.
O que poderia ter sido feito?
Teriam de ter implantado medidas de contenção. Teria de ter tido um lockdown (bloqueio total) muito mais curto e muito mais rígido. O isolamento foi muito fraco. O que aconteceu foi que, com esse lockdown meia-boca, os casos foram subindo, só mais lentamente, as taxas de propagação foram aumentando. E a gente nunca conseguiu nem chegar ao platô, nem diminuir casos. O governo também não aguentou a crise econômica causada pelo lockdown. Daí resolveram abrir com a curva em pleno crescimento.
A falta de entrosamento das autoridades federais e locais prejudicou as ações anti-covid?
Tinha de ter um discurso unificado, para garantir que, de uma certa maneira, o País todo tivesse uma estratégia. E aí, quando perdeu essa coordenação, cada Estado tomou as suas decisões, e até hoje cada Estado está decidindo sozinho. Que eles têm de ter uma certa autonomia, acho que faz sentido, mas tem de ter uma central de informações.
Isso seria papel do governo federal?
Claro. E, na época do (então ministro da Saúde Luiz Henrique) Mandetta, teve uma tentativa de fazer isso, apesar de o (presidente Jair) Bolsonaro ser contra, mas que depois foi totalmente destruído. E culminou nesse negócio de não reportar dados. A gente não tem acesso aos dados epidemiológicos, ainda tem confusão sobre o que é caso confirmado, o que não é, como é que confirma o caso.
Houve negacionismo ou não acreditaram no doença?
Você olha a história das pandemias anteriores. Elas sempre começaram, criam uma preocupação grande e desapareceram sozinhas. H1N1 foi assim, depois a zika, a gripe aviária, o ebola… A única que se espalhou pelo mundo e causou um estrago enorme foi a aids. Tinha uma experiência. Muitos presidentes, como o Bolsonaro e “é só uma gripezinha”. Não temos uma medida real para controlar a doença até hoje. No Brasil, o que está acontecendo, em vez de ter medidas que conseguiram reduzir e a gente entrar em uma segunda fase, que é manter o nível baixo, estamos tomando medidas que apenas reduzem a velocidade de expansão.
A pressa para voltar ao normal pode piorar as coisas?
Sim, porque não teve uma medida radical de contenção logo no começo. Você pega a Itália. Trinta dias, eles estavam no caos. E mais um mês e meio, dois, tinha voltado ao normal. Quer dizer, o ciclo todo levou três, quatro meses. O nosso está crescendo devagar. E não tem nenhum sinal de que estamos chegando ao pico da doença.
Nosso caso é único?
Olha, o nosso caso é uma versão piorada do que aconteceu nos Estados Unidos. Lá chegou ao pico, abaixou, mas já voltou a níveis que são iguais ao do pico. O nosso nem deixamos chegar ao pico. Já abrimos antes.
O que poderia ser feito para reduzir mesmo?
Teria de ter um lockdown rigorosíssimo. Três semanas daquelas que ninguém sai de casa, que foi o que os outros países fizeram. Como o nosso nível de infecção agora está muito mais alto do que os outros países, o lockdown vai ter que durar mais tempo. Acho que a preocupação agora é com o que vai acontecer com esse crescimento. Será que vai chegar um momento em que o País vai ter de decretar um lockdown? Porque, por enquanto, está assim: vai aumentando o número de UTIs, vai comprando mais respirador, e a coisa vai crescendo e tal. O Estado de São Paulo está batendo recordes todo dia de novos casos. E você vê que as pessoas não têm um plano para fazer nada.
O que esperar então para as próximas semanas?
Não tem nenhuma perspectiva de acontecer nada. Não tem nenhuma medida sendo tomada hoje com chance de mudar o crescimento no próximo mês. Basicamente, se não fizerem nada, as escolas não abrirão em setembro. Teriam de estar tomando medidas hoje para ter resultado na 2ª metade de julho, para em agosto o nível estar baixo e abrir em setembro. Sem fazer nada, a coisa não se resolve.
E nos próximos meses? Teremos uma vacina?
Estão começando a fase três, de ensaios clínicos. Só essa fase pode levar três meses, seis meses, nove meses. Aí vamos supor que se aprove a vacina daqui a nove meses. Aí tem de começar a produzir. É só para o ano que vem. A questão toda é como se administra o problema até chegar a vacina. A estratégia de todos os países é a seguinte: olha, vamos diminuir a contaminação a um nível bem baixo, que permita fazer contact tracing (rastreamento de contatos), com testagem bem organizada. A nossa estratégia está sendo a seguinte: olha, vou empurrando com a barriga. Fazendo uma coisinha aqui, outra ali, esperando que alguma boa notícia salve o dia. Mas não tem perspectiva. Basicamente, não tem plano.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.