É uma tradição da música clássica brasileira: julho, mês de festivais de inverno, que costumam acontecer em todo o país. Com a paralisação provocada pela pandemia do coronavírus, no entanto, foram todos cancelados ou adiados. “Eu me dei conta de que seria o primeiro julho em mais de 50 anos sem um festival de inverno no País e comecei a me perguntar o que poderíamos fazer sobre isso”, conta o trompetista Flávio Gabriel. Para encurtar a história: um mês depois, mais de 200 professores e 16 mil alunos começam nesta segunda-feira, 29, a trabalhar no Festival Internacional de Música em Casa, realizado totalmente pela internet, com aulas, concertos e debates.
Agora, a versão mais longa. Trompetista com passagens por diversas orquestras brasileiras Gabriel vive hoje em Natal, onde é professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. “Eu estava com essa sensação angustiante ao pensar em tantos alunos Brasil afora sem perspectiva por conta da paralisação das atividades das instituições musicais. Mas eu então me perguntei: por que precisamos sempre ficar à espera das instituições? E se fizéssemos nós mesmos, músicos, alguma coisa?”
Gabriel procurou alguns colegas músicos com quem trabalhou ao longo dos anos. “Todos ficaram animados com a ideia. E pedi então que se tornassem coordenadores dos cursos de instrumentos específicos, convidando outros professores. Éramos 21 e, de repente, nos tornamos mais de 200.”
Gabriel conversou também com a direção da escola de música da UFRN, que logo aceitou ser parceira do festival – outros departamentos da universidade ajudaram preparando o site, logotipo, material de divulgação e assim por diante.
A equipe que trabalha com ensino a distância e a de tecnologia de informação também subiram a bordo: na última segunda-feira, quando o site para inscrições entrou no ar, o servidor caiu por conta das duas mil pessoas que tentaram se cadastrar ao mesmo tempo. Na sexta-feira pela manhã, já eram 12 mil inscritos; no final do dia, quando se encerraram as inscrições, o total chegava a 16 mil alunos.
“A reação dos professores, todos voluntários, assim como a procura gigantesca dos alunos, me dão a sensação de que existia esse interesse, a demanda, de que a ideia estava rodando. O que faltava era um grupo de loucos que a colocasse em voz alta”, brinca Gabriel.
Estrutura
O time de coordenadores conta com alguns dos principais músicos brasileiros da atualidade. Emmanuele Baldini montou a grade de violinos; Fabio Presgrave, a de violoncelos; Pedro Gadelha, a de contrabaixos; os músicos do Quarteto Campestre ficaram responsáveis pela classe de violas; Erika Ribeiro coordena a turma de piano; Fabio Zanon, a de violão; Rosana Lamosa, a de canto e ópera; Evandro Mattè, a de regência; Claudia Nascimento, a de flauta. São apenas alguns exemplos de uma lista de mestres que, com o tempo, passou a incluir ainda professores da Europa e dos Estados Unidos.
O desafio seguinte foi estruturar os cursos tendo em vista a quantidade de alunos interessados. “Eu imaginava desde o início que o interesse seria grande, mas o número de alunos foi surpreendente”, conta Erika Ribeiro, professora de piano e música de câmara na UniRio. A classe de piano terá nada menos do que 1.267 alunos. “Não teríamos como ouvir todos eles, ainda mais por meio da internet. Então montamos encontros temáticos, abordando a história e o repertório do piano.”
Natalia Valentín vai falar sobre o fortepiano, Eduardo Monteiro, sobre as sonatas de Beethoven, Karin Fernandes sobre a música contemporânea; Ronaldo Rolim, sobre Chopin; Leonardo Hisldorf, sobre concertos para piano e orquestra; Maria Teresa Madeira, sobre modalidades da carreira de um pianista; Lucia Barrenechea, sobre técnicas de estudo. “Débora Gurgel vai discutir a improvisação no piano erudito. André Mehmari vai mostrar como ele junta influências diversas no seu pianismo, entre o erudito e o popular”, explica a pianista.
Na classe de regência, o maestro Evandro Matté, diretor da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, também montou uma grade em que cada maestro convidado vai falar de sua própria formação e de sua atividade profissional atual, além de discutir temas específicos. Ligia Amadio, da Filarmônica de Montevidéu, vai tratar de como se monta uma temporada; Victor Hugo Toro, da Sinfônica de Campinas, da regência na América Latina; o espanhol Manoel Coves, do preparo de óperas. A lista inclui ainda o diretor do Teatro Colón, Enrique Arturo Diemecke e o próprio Matté, que vai abordar a gestão de orquestras.
Na classe de violas, além dos professores estarão presentes alunos brasileiros hoje estudando no exterior, que vão compartilhar suas experiências: Adyr Francisco, Guilherme Santana, Christian Santos e Natanael Ferreira.
A programação foi montada em conjunto por Pedro Visockas, Alexandre Razera, Gabriel Marin e Renato Bandel, idealizadores do Encontro Campestre de Violas e do Quarteto Campestre. Eles próprios darão aulas. Visockas vai explorar o repertório clássico, Razera terá como tema a técnica de mão esquerda; Marin vai abordar técnicas de aquecimento diário e Bandel, a obra de Bach.
A grade é diversificada e também vão participar outros músicos, como a violista Roberta Marcincowski, assim como o luthier André Amaral, com dicas sobre a manutenção de instrumentos, com dicas para o que se pode fazer em casa durante a pandemia.
“São temas importantes e temos percebido nas nossas aulas durante a pandemia que eles interessam aos alunos”, explica Visockas, músico da Orquestra Sinfônica Municipal do Teatro Municipal de São Paulo e também professor do Instituto Baccarelli, que também tem realizado palestras e masterclasses diárias desde o início do isolamento social.
A programação do Fimuca vai incluir ainda a transmissão diária pelo Facebook de concertos cedidos por grupos brasileiros: a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, a Orquestra Sinfônica da Bahia e a Orquestra Filarmônica de Goiás. Diariamente, serão realizados debates com gestores, maestros e músicos sobre o cenário atual e os desafios provocados pela pandemia.
“No começo, tivemos medo de montar uma grade maravilhosa e encontrarmos pouca resposta”, diz Flávio Gabriel. “Pensamos que talvez as pessoas pudessem estar saturadas da internet depois de três meses de isolamento”, completa.
Não foi o caso. E Gabriel conta que já está sendo estudada na universidade a realização, ainda em julho, de um festival nos mesmos moldes, mas dedicado à música popular
“Estão todos isolados, mas querendo participar. Para os alunos, é difícil ter aulas neste momento. Então esta é uma oportunidade de poder fazer parte de algo maior do que simplesmente estar sozinho em casa”, acredita Erika Ribeiro. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.